segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Às vezes...




Às vezes só a mentira salva. Então, no dia seguinte, quando as quatro Marias cansadas foram trabalhar, ela teve pela primeira vez na vida uma coisa, a mais preciosa: a solidão. Tinha um quarto só para ela. Mal acreditava que usufruía o espaço. E nem uma palavra era ouvida. Então dançou num ato de absoluta coragem, pois a tia não a entenderia. Dançava e rodopiava porque ao estar sozinha se tornava l-i-v-r-e! Usufruía de tudo, da arduamente conseguida solidão, do rádio de pilha tocando o mais alto possível, da vastidão do quarto sem as Marias. Arrumou, como pedido de favor, um pouco de café solúvel com a dona dos quartos, e, ainda como favor, pediu-lhe água fervendo, tomou tudo se lambendo e diante do espelho para nada perder de si mesma. Encontrar-se consigo própria era um bem que ela até então não conhecia. Acho que nunca fui tão contente na vida, pensou. Não devia nada a ninguém e ninguém lhe devia nada. Até deu-se ao luxo de ter tédio – um tédio até muito distinto.
CLARICE LISPECTOR

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Meu coração tardou...



Meu coração tardou. Meu coração
Talvez se houvesse amor nunca tardasse;
Mas, visto que, se o houve, houve em vão,
Tanto faz que o amor houvesse ou não.
Tardou. Antes, de inútil, acabasse.

Meu coração postiço e contrafeito
Finge-se meu. Se o amor o houvesse tido,
Talvez, num rasgo natural de eleito,
Seu próprio ser do nada houvesse feito,
E a sua própria essência conseguido.

Mas não. Nunca nem eu nem coração
Fomos mais que um vestígio de passagem
Entre um anseio vão e um sonho vão.
Parceiros em prestidigitação,
Caímos ambos pelo alçapão.
Foi esta a nossa vida e a nossa viagem.

Fernando Pessoa

foto da net

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Tudo é belo



Faça voar o pensamento.
Sensibilize o coração e imagine a beleza do sol, que,
antes de aparecer no horizonte, já manda luzes.
Aos poucos, ele clareia a superfície da terra,
revelando flores, folhas de árvores, riachos e aves,
as quais, alegres, abrem as asas e percorrem
os ares com grande encanto.
Tudo é belo.
E o sol reina.
Há também beleza em seu interior.
E então você se lembra de si mesmo.
E se vê com uma beleza ainda mais real que a externa.
E o seu coração agradece a Deus, que fez
o próprio sol, a você e a tudo o mais.
Pensar em beleza é sublimar o espírito.

Autor Lourival Lopes
Foto da net